Corumbá, Sexta, 02 de Maio de 2025
Ahmad Schabib Hany

DONA EVA GRANHA, NA MEMÓRIA E NO CORAÇÃO!

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Ahmad Schabib Hany
Filha de revolucionário espanhol exilado na Bolívia e fundadora do PT em Corumbá, Dona Eva Granha de Carvalho foi a idealizadora da mística usada por Cecílio de Jesus Gaeta para a perenização de seu "roseiral querido". Forte mas meiga, decidida mas ponderada, líder mas não caudilha, Dona Eva leva consigo uma história de luta e de caráter, como grande Cidadã do mundo e à frente de seu tempo.
Sem palavras.
[Mas não faria isso com o querido e generoso Jornalista Alle Yunes Solominy Neto, de deixar uma página em branco em homenagem à Amiga que depois de minha saudosa Mãe não só amei como admirei sem reserva. Essa iniciativa, aliás, teria sido em meus irreverentes tempos juvenis no saudoso Diário de Corumbá.]
Um dia depois de nos despedirmos do Papa Francisco e um dia antes de perdermos um dos mais completos Jornalistas e Cineastas, Cândido Alberto da Fonseca, eis que a Vida nos dá outra "invertida": Dona Eva Maria Granha de Carvalho, querida Amiga e, mais ainda, referência de Mulher, de Cidadã e incansável lutadora por uma sociedade sem senhores e servos nem fronteiras, se eterniza com a mesma dignidade e discrição que a caracterizou em toda a sua Vida impecável de serviços, resistência e desafios pelo seu semelhante sem vez, sem voz e sem porvir.
Filha do Senhor Antonio Graña, republicano espanhol exilado na Bolívia, onde constituiu uma Família prodigiosa e, iguais a ele, incansáveis lutadores. Ao passar pelo Brasil, em São Paulo, até tentou trabalhar em seu sagrado ofício, de invejável criador de móveis e admirável escritor, pois lia clássicos universais e  escrevia com a desenvoltura de digno revolucionário. Um dos responsáveis pela "surra" aos integralistas, fascistas brasileiros, na Praça da Sé, o resoluto e insubornável Camarada Graña foi levado contra a vontade à Estação da Luz para procurar exílio na Bolívia, pois no Brasil do Estado Novo, aliado de Francisco Franco (o ditador fascista espanhol), não conseguiria viver por muito tempo.
Diziam seus descendentes diretos da Bolívia que Dona Eva, à exceção do gênero feminino, em nada diferia de seu progenitor, tanto no caráter forte e sincero como na generosidade de se entregar à luta por uma sociedade mais justa e um mundo sem opressores nem oprimidos. Infatigável, sincera e explicitamente socialista, foi Dona Eva, no início do regime de 1964, quem tomou a iniciativa de levar -- e pedir às suas companheiras da Legião de Maria da igreja em que congregava que também levassem -- rosas vermelhas ao candidato da oposição. O Bispo da época, conservador, não quis tomar conhecimento, pois respeitava e admirava Dona Eva.
Não se importando que não fosse um socialista como ela ou mesmo opositor convicto, à altura da dignidade e do caráter da querida Dona Eva (sabia da falta de convicção e do oportunismo do lanterninha dos suplentes da Câmara Municipal de Corumbá e que só assumira o cargo edilício por ser considerado "confiável" para a ditadura em construção, por sua fraqueza de caráter, fácil de ser "amansado"), o ajudou com a mística das rosas vermelhas no início e depois no final dos comícios, cada vez mais concorridos, a ponto de ganhar dimensões multitudinárias.
Os filiados do velho e histórico MDB das décadas de 1960 e 1970 conheciam a contundência das palavras de Dona Eva Granha ao se dirigir ao então Deputado Cecílio de Jesus Gaeta. Entre as pouquíssimas mulheres na política -- como ela, de caráter, havia mais duas: uma também no MDB e a outra na Arena, respectivamente a Advogada Beatriz de Araújo e Dona Aurélia Figueiredo, da Liga de Entidades Carnavalescas de Corumbá. Porém, mesmo sem cargo eletivo, era Dona Eva Granha a única a falar "de igual para igual" com Gaeta, que a respeitava e costumava ouvir, quieto, as recomendações e, também, as "puxadas de orelha" que fazia sem titubeio nem parcimônia.
O divisor de águas para Dona Eva Granha foi a campanha de 1978. Nela Gaeta se declarou "independente"  -- não mais oposicionista -- e ajudou abertamente o ex-governador Pedro Pedrossian (que depois de eleito pela oposição aderira ao regime) a se eleger senador pela Arena, com a sublegenda de seu inimigo político José Fontanillas Fragelli, também ex-governador e corumbaense ligado à UDN dos tempos anteriores à ditadura.
Dona Eva, além do apoio incondicional ao Advogado Plínio Barbosa Martins, um exemplo de democrata convicto e leal dirigente do MDB estadual (Irmão de um dos primeiros cassados do regime de 1964, Advogado Wilson Barbosa Martins, dois irmãos que foram ex-prefeitos de Campo Grande), fizera campanha para Humberto Neder (líder trabalhista muito conhecido no movimento sindical anterior às intervenções e cassações de líderes trabalhistas), na sublegenda do MDB para o Senado. A postura desleal de Gaeta consagrou a vitória à Arena em seu pleito derradeiro -- o primeiro de Mato Grosso do Sul, a ser instalado de fato e de direito no ano seguinte, 1979.
Foi nesse contexto que a conheci. Com a tarefa de contatar emedebistas leais em Corumbá, conversei, um a um, com membros do antigo diretório municipal, tomando o cuidado de só falar com os seguidores do deputado Gaeta ao final, para conhecer o nível de insatisfação com o líder emedebista, já desgastado entre seus correligionários pela falta de lealdade e disciplina partidária. Assim, comecei pelo querido e saudoso José de Oliveira, que condicionara sua permanência no PMDB -- o sucedâneo do velho MDB -- ao posicionamento de Dona Eva Granha, referência de ética, lealdade e coerência oposicionista à ditadura militar sem disfarce.
Pedi a ele para conversarmos, então, com Dona Eva, pois, pelo relato do vereador, tratava-se de uma líder que deveria ser ouvida antes de qualquer reunião preparatória para o lançamento da Comissão Executiva Municipal, em fevereiro de 1980. Na época ela morava no centro, não sei se na rua Tiradentes ou Ladário, entre a Delamare e a General Rondon. Nosso primeiro encontro foi numa tarde de muito calor, e ela, costureira gabaritada, estava com muitas encomendas. Mesmo assim, gentil e falante, nos recebeu com café e bolo -- característica da hospitalidade de corumbaense "de chapa e cruz". A mesma simpatia e sinceridade da saudosa Heloísa Urt, outra fundadora do PT, mas em Ladário.
Fiquei encantado com Dona Eva, por seu conhecimento de política, de cultura e das conjunturas nacional e internacional. Ao ouvir meu nome, perguntou qual era minha posição sobre a questão palestina e a postura do Brasil no conflito israelo-árabe, deixando evidente a sua solidariedade ao povo palestino. Dizia abertamente ser contra a ditadura militar. Questionava a deslealdade de Jesus Gaeta como emedebista. A par de que Gaeta havia optado pelo PP de Tancredo Neves e Magalhães Pinto, ela disse que essa "oposição" não ficaria muito tempo autônoma e voltaria ao seio do PMDB, de onde ela se originou. Como ela e José de Oliveira eram muito amigos, mostrei o texto gravado no estúdio do querido Antônio Malheiros com a voz inconfundível do saudoso Roberto Hernandes, cunhado do diretor do Diário de Corumbá, o saudoso Waldir Nunes Pereira.
Depois de ouvir a gravação da contundente chamada para o ato de fundação do PMDB local, a ser divulgada na picape de Zé de Oliveira, aceitou participar da nova conformação daquele partido em Corumbá, tendo integrado sua Comissão Executiva Municipal Provisória que teve como presidente o também antigaeta Advogado Rômulo do Amaral (vítima da ditadura, ao ter fraudada a urna de uma seção eleitoral da área rural, o que, por diferença de dezenas de votos, dera a vitória ao médico Breno Medeiros Guimarães, da Arena, amigo de Pedro Pedrossian, já governador de Mato Grosso, em detrimento do franco favorito, Rômulo, do MDB). O Professor Valmir Batista Corrêa foi quem revelou mediante o recurso de Rômulo ao TRE-MT que, ao final do mandato do prefeito Breno, reconheceu que os votos daquela seção eleitoral deveriam ser anulados. Mas ficou por isso mesmo, afinal, a ditadura estava em processo de consolidação, por meio de fraudes eleitorais, censura à imprensa, prisões ilegais, mortes não esclarecidas e desaparecimentos nunca elucidados.
Ironia da História, com os casuísmos criados pelo Palácio do Planalto para que seu novo partido, o PDS, não perdesse feio, a maioria dos líderes do Partido Popular (o PP de Tancredo, Magalhães Pinto e Thales Ramalho) aprovou a fusão com o PMDB e, em pouco mais de seis meses, o PMDB se cacifava para ser o maior partido de oposição ao regime de 1964. Assim, o que Dona Eva previra no dia em que nos conhecemos era fato consumado em Mato Grosso do Sul: para desespero de José de Oliveira, Rubens Galharte e Joilce Viegas de Araújo, vereadores em Corumbá, de Rômulo do Amaral e da mesma Dona Eva.
Com os devidos reparos de memória, a propósito de uma ineludível reflexão do querido Amigo-Irmão Jornalista Edson Moraes, registro a importante atuação da Executiva Estadual do PMDB por meio de uma equipe integrada pelo saudoso Professor Amarílio Ferreira Junior, Mário Sérgio Lorenzetto e Edson Moraes, que empreendeu efetiva construção da Frente Democrática em Corumbá. O tempo urgia e o risco iminente do reingresso do deputado Gaeta, desejoso do controle total do diretório local (como passou a fazer depois de se tornar parlamentar), fez com que houvesse essa força-tarefa para evitar não só defecções (como a de Rômulo, que acabou indo reforçar as hostes do PDS, seu adversário histórico e responsável pela fraude que o levou a uma derrota inexistente), mas a fim de que o diretório refletisse a pluralidade das forças contrárias ao regime militar e desejosas de uma sociedade livre de casuísmos e perseguições.
Assegurada a pluralidade no interior do PMDB, para a qual Dona Eva e José de Oliveira também foram protagonistas, sua saída foi inevitável. Como acordado, passei-lhes contato de dois ex-assessores de bancada na Assembleia Legislativa que, assessorando o agora fundador do PT nacional Deputado Antônio Carlos de Oliveira, vieram estruturar a primeira Comissão Executiva Municipal Provisória do PT: Dona Eva Maria Granha de Carvalho, José de Oliveira, Dilson José de Carvalho, Romeo Ângelo Román Áñez e Marlene Terezinha Mourão (a saudosa Helô se incumbira de organizar o PT em Ladário, junto com um psicólogo de sobrenome Ceballos).
Anos depois, a Filha caçula de Dona Eva, Jacqueline, se casara com um Amigo que a Vida me presenteou: Eliseu Campos, que em sua juventude se dedicara à produção de vídeo com muito talento e projetos de que generosamente me fez participar, como o de um canal "binacional" de televisão com sede em Puerto Quijarro (mesmo concretizado e bem profissional, não demorou para que a "vênus platinada" intercedesse junto às autoridades bolivianas e, sob argumento de exigências legais, o canal foi suspenso e, diante das despesas acumuladas, não restou outra atitude ao Amigo que a interrupção do projeto pioneiro em todo o Brasil).
Dona Eva Granha na época passava uma temporada em Corumbá e outra em Belo Horizonte, na casa da Filha mais velha, Celeste, cujo esposo era geólogo da CVRD (estatal privatizada no primeiro mandato de FHC, e as demissões e "fatiamentos" conhecemos pela imprensa na década final do século XX). Em toda vinda a Corumbá não deixava de participar da Ação da Cidadania contra a Fome e pela Vida e da articulação local, do Pacto Pela Cidadania. Em 1998, ao lado dos também queridos e saudosos Senhores Jorge José Katurchi e Carlos Urquidi, Dona Eva recebeu homenagem em Vida que muito a comoveu: Cidadã Vanguarda, distinção concedida às pessoas reconhecidamente de vanguarda, na defesa de causas maiores. Também saudosos e queridos, Dom José Alves da Costa, Padre Pasquale Forin e Padre Ernesto Saksida foram os que entregaram essa distinção aos três saudosos batalhadores de grandes causas.
Não são poucas as verdadeiras lições de Vida e de humildade deixadas por Dona Eva. Só ela mesmo para me "mandar" ajoelhar. Mais que isso, se conseguisse, "se amasse de verdade", que me atirasse ao chão e declarasse em alto e bom som, no local de trabalho, à minha Companheira de quase dez anos de convívio generoso e solidário entre fins da década de 1980 e fins da década de 1990. Não sei se o querido Eliseu se lembra disso, pois o disse diante dele e de sua Filha caçula e sua incondicional Companheira de Vida, a igualmente estimada Jacqueline. Envergonhado, pela primeira vez eu divergia de minha referência política, cidadã e de utopias.
Há pouco tempo, por meio dos Jornalistas Edson Moraes e Luana Schabib, tentou-se um depoimento da querida Dona Eva, mas por causa da fragilidade de sua saúde pareceu ser arriscado gravá-la. Bastante lúcida e conectadíssima à conjuntura política, sem câmeras e microfones, tivemos um grato e memorável encontro, ao lado de Omar e Sofia, propiciado por Jacqueline e Eliseu, cuja irradiação e magnetismo vital celebrou nosso encontro existencial.
A notícia de sua eternização, contudo, nos abalou tanto que não conseguimos nos fazer presentes no momento de sua despedida derradeira. Além do pedido de desculpas, injustificável reconheço, às Filhas Jacqueline e Celeste e seus respectivos Companheiros de Vida e Netas e Netos queridos, reiteramos nossos mais profundos sentimentos pela ausência eterna da sempre querida Dona Eva, autêntica Cidadã à frente de seu tempo, sempre na memória e no coração.
Até sempre, Dona Eva, e obrigado por ter-nos ensinado tanto, com doçura de Mãe e firmeza de guerreira das grandes causas! Seu legado vive e viverá nas consciências e nos corações das gerações presentes e futuras a fecundar ideais generosos de liberdade e de justiça social. Saudade, eterna saudade!

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