BRASIL, UM PAÍS DE HAMBÚRGUERES E DOMINGOS DE SOFÁ
O Brasil moderno tem seus rituais. Já não se reza antes das refeições, mas se rastreia o entregador em tempo real. A missa de domingo foi substituída pela fé no aplicativo e, em vez de hóstias, consomem-se hambúrgueres. Milhões deles. Literalmente.
De acordo com dados recentes do iFood – essa entidade que nos alimenta enquanto suga nossa espontaneidade culinária – o hambúrguer é, pelo quinto ano consecutivo, o campeão nacional de pedidos na categoria Restaurante. Quase 250 milhões de unidades foram entregues em 2024. São 475 hambúrgueres por minuto. Que apetite voraz, que fome de gordura!
Domingo, dia nacional da inércia, lidera o ranking do consumo. Coincidência? Claro que não. O brasileiro médio, espremido entre o cansaço e a geladeira vazia, encontrou no hambúrguer o santo graal da indulgência moderna: chega rápido, mastiga fácil e, com sorte, vem com batata frita.
Mas o fenômeno vai além do delivery tradicional. O iFood também aponta que os pedidos de hambúrguer congelado saltaram 238% no primeiro quadrimestre de 2025. Sim, a classe média cansou até de esperar o motoboy. Agora, ela mesma grelha o disco de carne — entre uma reunião no Zoom e uma live sobre autocuidado. Comer virou um exercício de conveniência e culpa com gosto de cheddar.
A diretora de marketing do iFood, em tom quase poético, descreve o hambúrguer contemporâneo como uma entidade plural: “vegano, vegetariano, low carb, de camarão, salmão, sushi, picanha, cordeiro e até linguiça”. Está tudo aí, menos o bom senso. A democratização do hambúrguer reflete menos diversidade alimentar do que uma compulsiva vontade de reinventar a roda — ou melhor, o pão com carne.
No fundo, o que temos é uma epidemia de comodidade padronizada. A explosão de hambúrgueres não representa apenas o sucesso de uma receita americana tropicalizada, mas a falência de qualquer impulso criativo à mesa. Desaprendemos a cozinhar, a improvisar, a comer com tempo. Vivemos entre telas e entregas, terceirizando até o ato de alimentar-se.
O hambúrguer tornou-se o símbolo de um país que desaprendeu a comer com prazer e começou a comer para preencher silêncios. Silêncios de domingo, de solidão, de tédio. Em vez de reunir a família, abrimos aplicativos. Em vez de panela, fritura pré-fabricada. Em vez de memória afetiva, ketchup industrializado.
E assim seguimos, entregues — no duplo sentido da palavra — a um modo de vida onde o máximo de liberdade está em escolher entre cheddar duplo ou maionese verde. Uma revolução alimentada por algoritmos. E com gosto de carne processada.
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